sexta-feira, 4 de março de 2005

O julgamento de incógnitas

- A sessão está aberta. A promotoria pode ser apresentar.
Uma mulher morena de cabelos presos em coque se levanta e começa a falar em um tom sério:
- A senhora X admitiu ter matado friamente o seu namorado...
- Não.
A juíza a repreende pela interrupção e a ré se desculpa. A promotora prossegue:
- A senhora nega ter matado o senhor Y?
- Não.
- Mas não foi o que acabou de dizer?
- Eu não neguei tê-lo matado. Mas ele nunca disse ser meu namorado. Sempre me apresentava como uma amiga. E tampouco o fiz friamente, muito pelo contrário, eu estava em chamas.
- Será que poderia explicar para o júri o que quer dizer com “em chamas”?
- Eu estava furiosa com ele.
- E a senhora estava na TPM, então não pôde controlar seus impulsos?
- Ele foi um filho da puta.
A juíza fez outra repreensão.
- Por favor, controle o seu linguajar.
- Perdão, meritíssima. Mas a senhora, como mulher, e até mesmo a promotora, com certeza conhecem tão bem quanto eu os motivos pelos quais me deixei levar pelos meus impulsos, como bem disse.
A promotora se apressou em discordar da ré.
- Não sou eu quem está sendo acusada por assassinato.
- Mas vai me dizer que nunca teve vontade de esganar um namorado mentiroso?
- Ora, não vejo motivos para expor minha intimidade aqui para você.
- Eu só estou tentando lhe mostrar que a minha intimidade não é tão diferente da sua.
- Então me mostre. Quais foram os justificáveis motivos do homicídio?
- Nunca disse que eram justificáveis, promotora. E gostaria que a senhora fosse menos sarcástica. É a minha vida que está em jogo, não me faça sentir incontroláveis impulsos de estrangulá-la.
Essa última frase fez com que todos no local ficassem inquietos e causou problemas para que a juíza conseguisse controlar os ânimos dos presentes.
- Que pessoal sem senso de humor...
- Senhora X, por favor deixe de lado as piadinhas e diga o que tiver a dizer em sua defesa. – falou a juíza em um tom sério.
- Sim senhora.
Só então as faces da promotora começaram a retornar à sua cor original.
- Então... Ele foi muito gentil para me conquistar, mas isso é meio óbvio. No início dava sempre notícias, me informava sobre os detalhes da vida dele, me fazia quer que teríamos um futuro.
- Aí ele fez sexo com você e foi embora? Isso não é uma exclusividade sua, sabia? – interrompeu a promotora, impaciente.
- Nada do que eu vou dizer será inédito, promotora. Aliás, qual é o seu nome?
- Z.
- Z, ótimo. Então, Z, ele não estava comigo por causa do sexo. Eu não sou a Hilda Furacão, mas se fosse por isso eu entenderia e me contentaria em desprezá-lo. Mas ele sempre me tratou muito bem e parecia se preocupar comigo.
- Um motivo plausível para um assassinato.
- Mas será que dá pra você calar essa sua boca venenosa? – gritou X, impaciente.
A juíza começou a bater seu martelo, exigindo ordem. Mas X continuou:
- Não se preocupe, eu sei que vou ser presa! Eu só quero ter a chance de me explicar, será que eu posso? Afinal, foi para isso que convocaram esse julgamento, não é mesmo? Porque se for uma só uma encenação eu paro por aqui e me deixo ser levada para a cadeia.
Todos na sala permaneceram temerosos e silenciosos.
- Obrigada. – e continuou – Eu apenas cansei de ouvir sempre as mesmas desculpas. Eu cansei de me iludir com falsas promessas.
Z se controlava para não interrompê-la.
- Pra que ele dizia que era especial? Era a mim ou a si próprio que queria enganar? Eu juro diante deste tribunal que não vejo o que poderia tê-lo feito mentir para mim. Por que em um dia ele está todo carinhoso comigo e no outro se mostra totalmente blasé? Por mais que eu tenha tentado intensivamente nesses poucos anos da minha vida, nunca consegui entender o que os homens queriam. Talvez os exemplares masculinos do nosso júri possam me explicar. – nenhum jurado ousava abrir a boca – Não se preocupem, eu não vou matá-los, ninguém aqui me iludiu.
A juíza falou em um tom meio maternal:
- Senhora X, nós seres humanos somos volúveis. Um dia acordamos e vemos que o eu achávamos que queríamos ontem não é o que queremos hoje. Todos temos os nossos problemas, mas isso não é motivo para sairmos matando uns aos outros.
- Não... às vezes eu acho que eles fazem de propósito.
- Eles?
- Os homens.
- Ora essa, tenho certeza de que há muito homens sensíveis e muitas mulheres insensíveis por aí.
- Mas são justamente esses os piores! Eles te dizem o quanto gostam de crianças, o quanto os seus olhos são bonitos e um dia simplesmente descobrem que procuram algo mais especial. E você, que acreditava ter encontrado o cara com quem seria guardada junto em um vaso de porcelana, de repente perde as asas e cai. Aquelas palavras antes tão doces e melodiosas agora só servem para arranhar o seu coração.
X pára de falar e pode-se ouvir o choro de uma mulher no fundo da sala. A juíza pede a um guarda que a leve para fora, mas ela recusa o auxílio do segurança e se retira sozinha.
- Isso é tudo que eu tenho a dizer em meu favor.
- Mas e quanto à cena do crime
- Z, vamos fazer um recesso de dez minutos e depois você pergunta isso, ta? – a juíza engole toda a água que estava em sua boca e em seu copo e se retira do recinto.
A promotora fita a ré e esta fita suas mãos. A primeira sumiu, mas o julgamento foi retomado e a segunda se limitou a confirmar ou negar os fatos. Obviamente, foi condenada e passou longos vinte e cinco anos sem ouvir as mentiras ou as verdades ditas pelos homens. Saiu da cadeia envelhecida e amargurada, passando o resto a vida a cuidar de um furão que ganhou assim que teve a liberdade, o último homem da sua vida. Suicidou-se quando este morreu.



Thaïs Gualberto

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