quinta-feira, 30 de junho de 2005

Caçando calangos III

Assim que cheguei ao local exato do primeiro encontro ouvi um barulho de carroça se aproximando por trás de mim. Não tive coragem de me virar, mas prestei atenção nos movimentos do homem misterioso, descendo do carro e chegando cada vez mais perto, até ficar do meu lado. Pensei em cumprimentá-lo, mas depois lembrei que não faria diferença.

- Leu?
- Li sim. Por que você me deu isso?
- Isso você vai saber no tempo certo.
- Tempo certo?
- Pare de fazer perguntas e me escute.

Eu calei a boca e esperei que ele começasse a falar. Esperei muito. Comecei a desconfiar da rapidez do pensamento dele. Virei o rosto para poder vê-lo melhor e percebi que tinha marcas de sol e do boné. Talvez o excesso de sol na cuca tenha danificado a capacidade de raciocínio do homem.

- Você concorda com o que o poema diz?
- Não. Por que você deu este poema a mim? Eu nem gosto de ler poemas.
- Isso não vem ao caso.
- O que espera de mim? Que eu analise o texto? Olha, eu faço Letras, mas não sou a pessoa mais indicada para isso, se quiser posso te indicar algum colega meu...
- Cala a boca e escuta.

Suspeitei que ele me obrigasse a ouvir o silêncio dele novamente, mas começou a falar logo em seguida:

- Você não concorda com o poema, então? Você não acha que o nordestino é injustiçado no sul e no sudeste?
- Olha, se você quer discutir política comigo poderia ao menos escolher um lugar menos perigoso.
- Eu não quero discutir política com você. Quero que você me ajude.
- Eu? Por que eu? Eu sou tãaaaao egoísta...
- Não é não.
- Desde quando você me conhece melhor que eu mesma?
- Desde que eu passei a pesquisar a sua vida.
- Você tem me perseguido? Eu vou ser seqüestrada?
- Não, idiota.

Fazia muito tempo que alguém não me chamava de idiota. Isso doeu.

- Você tem que me ajudar a levar o calango pro sul.
- Se eu sou idiota, você é doente.
- Você é idiota e não me conhece. Eu te conheço.
- Pra que você quer a ajuda de uma idiota, então?
- Para que você se comunique com os outros idiotas.
- Cara, eu te odeio tanto... – ele ignorou o meu comentário e continuou a falar no mesmo tom de sempre.
- Eu vou te mandar pra lá e você vai ser a encarregada do calango.
- Encarregada do calango? – não consegui conter o riso – Onde eu estou? Em algum fanzine de terceira?
- Idiota. Volte para casa agora. Você vai receber um e-mail com todas as informações que precisa.
- Você pode ao menos me dar uma carona na sua carroça? Já está tarde, fica meio perigoso voltar sozinha.
- Não.

Gritos

- Seu José está furioso hoje.
- Você sabe por quê?
- Eu não. Mas hoje nem é dia de lua cheia.
- E o que isso tem a ver?
- Olha... Dizem que os loucos ficam mais loucos na época de lua cheia.
- Vai ver os loucos eram os lobisomens.
- Os lobos homens.
- Os loucos homens.

terça-feira, 28 de junho de 2005

Caçando calangos II

No dia seguinte, eu refiz o mesmo trajeto para encontrar o sertanejo misterioso, mas, obviamente, o mundo não era o mesmo. Descendo a Epitácio Pessoa encontrei uma cobra atropelada, fato, para mim, muitíssimo assustador.
Lembro-me da minha infância, quando meu pai me contava dos amigos dele na Inglaterra que perguntavam a ele se caçávamos cobras aqui no Brasil. Eu e meu pai sempre ríamos dessa história, considerando-a absurda. Ao ver aquela cobra espragatada no asfalto senti como se todos os ingleses rissem de mim. A sensação de angústia remeteu-me novamente à lembrança do homem da cabeça chata e do seu cordel. Seus primeiros versos diziam:

Neste grande mundo cão
Quem não é grã-fino sofre
Do diabo come o pão
De centavo pinga o cofre
É difícil ter um irmão
Que não seja do enxofre

Quem quer melhorar de vida
Quer dar o melhor pra família
Desce pra terra querida
Sem dinheiro nem mobília
Espera que sua ida
Seja aquela maravilha

É no sul que nordestino
Dá-se conta da verdade
Norte velho ou sul menino
Pobre sofre a eternidade
Os moleque sempre fino
Buxo d’água não se evade

Melhor era no nordeste
Onde era tudo irmão
Calango matava fome
Calango era a salvação
Mas a infelicidade consome
Sertanejo no sudeste


Como uma jovem que sempre morou em uma capital litorânea do nordeste, aqueles versos me irritaram profundamente. Tive a impressão de que haviam sido feitos por algum jornalista da Globo. Mas por que aquele homem teria me entregado aquele folheto? Comecei a desconfiar que ele quisesse a minha participação em algum grupo militante.

domingo, 26 de junho de 2005

Caçando calangos

Eu estava sóbria quando ele me apareceu. Devia ter cerca de um metro e sessenta de "altura", cabeça chata (provavelmente de ter carregado muita lata d'água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Mariiiiiiiia...) pele morena queimada do sol e um olhar desconcertante. Eu estava descendo a Epitácio Pessoa às nove da noite, preocupada e com medo de que saísse algum meliante das matas do rio Jaguaribe quando ele me apareceu. Acho que melei minha calcinha de cocô quando essa figura parou na minha frente, mas com medo da reação dele ao farejar meu medo, fiz o possível para cumprimentá-lo normalmente. Ele não só ignorou a minha rara demonstração de educação como falou da maneira mais seca e grossa possível. Aí eu tive certeza de que estava melada.
O sertanejo entregou-me um folheto de cordel com a xilogravura de um calango na capa. Pelo menos eu achei que fosse um calango. Nunca tive muita certeza da diferença entre calango, lagartixa e víbora. Acho que nunca tinha visto um calango. A única coisa que ele me disse foi que voltasse para casa, lesse aquele folheto e voltasse no dia seguinte para aquele mesmo ponto da avenida, no mesmo horário para encontrá-lo.
Foi aí que minha curiosidade superou o meu medo.

quinta-feira, 23 de junho de 2005

Entrelinhas II

Date: Sat, 6 Dec 2003 19:57:46 -0500 [12/06/2003 10:57:46 PM BRT]
To: I
Subject: Re: agora eu tb sou xique!!!!!



Vou responder seus e-mails um por um agora!!!
Não tenho culpa se eles são grandes e no fim nunca dá tempo de respondê-
los ;PPP (e não, eu não quero que você escreva menos!!)

Eu ainda não vi "O homem que copiava" ;P Mas que bom que você gostou
viu ;) E sim, claro que eu ainda lembro do morto ;D Você tem falado com
ele? Jamais imaginei que esse filme tivesse qualquer coisa a ver com o
meu conto, mas eu vi num trailer que ele começa a falsificar dinheiro
por causa da doidinha que ele gostava, né?

Na hora de você pedir o acarajé, pode pedir quente ou frio (com ou sem
pimenta, respectivamente). Eu sempre peço sem, sou muito mole pra essas
coisas ;P
Aqui não é SP mas também tem pizza delivery ;P e tem também China in
Box ;P Mas não duvido que tenha disso lá na Bahia... Foda que o acarajé
lá da feirinha é 6 reais $_$~~

Sim, e eu desisti da estória do livro. Ia acabar saindo muito caro pra
mim, acho melhor seguir meios mais tradicionais, como tentar publicar
algo no jornal... É mais saudável e mais barato XP~

beijinhos, até o próximo e-mail ;D

segunda-feira, 20 de junho de 2005

Porra...

- Eu recebi uma carta de um ex-namorado meu.
- E o que ele dizia nela?
- É uma carta enorme, parece-me cheia de rancor.
- Uau.
- Uau nada. Ele começa a carta dizendo que finalmente tinha se livrado de mim.
- Como assim?
- Acho que ele descobriu que não é mais apaixonado por mim.
- Há quanto tempo você acabou?
- Uns seis anos.
- Porra...

sábado, 18 de junho de 2005

No oftalmologista

- Agora sente aqui e encoste o rosto aqui.
Ele escolheu uma lente.
- Leia isso.
- A, c, e, f, y, z.
Mudou a lente.
- O, i, g, h, n, w.
Tapou a visão do meu olho esquerdo e começou a trocar as lentes do direito.
- Que tal essa lente?
- Não, tá embaçada.
- Ótimo. Que tal essa?
- Essa tá melhor.
- E essa?
- Também.
- E que tal essa?
- Também.
Voltou para a lente anterior começou a alternar as três últimas.
- Essa ou essa?
- Sei lá, pra mim é a mesma coisa.
- Tem uma pequena diferença, preste atenção.
- Tá...
- Essa ou essa?
- Ã... Essa.
- Essa?
- É.
- Tem certeza?
- O que é isso? "A Porta dos Desesperados"? Eu já falei que pra mim parece tudo a mesma merda, é claro que eu não tenho certeza.
- Tudo bem... Você tem miopia, astigmatismo e falta de educação.
- Isso eu já sabia antes da consulta. Qual o meu grau?
- Esse ou esse.
- Ai meus sais...

segunda-feira, 6 de junho de 2005

Ciao Sampa

- Nunca comi em boteco.
- Oh, é mesmo! Você veio a Sampa e não comeu um "Virado à Paulista" num boteco!
- ...
- Ah, sim. Volta pra cá quando pra comer isso?
- Heheehe. Quando eu me aposentar.

Para Bandini

ESTREVISTADOR: Estamos aqui com Tatiana, uma jovem que só depois de conhecer as privações da vida pôde apreciar as maravilhas que o mundo tem a oferecer. (VIRA O ROSTO DA CÂMERA PARA O ENTREVISTADO) Diga-nos, como foi essa sua jornada? (APÓIA AS MÃOS NAS PERNAS E FAZ CARA DE INTERESSADO)

ENTREVISTADO: Tudo começou (PAUSA) quando eu me mudei para a cidade grande. (GRANDE PAUSA. CLOSE) Eu era uma jovem feliz que tinha uma vida confortável, mas tudo mudou quando eu fui para aquele apartamento... As dificuldades começaram quando ele apareceu...

ENTREVISTADOR: Ele quem?

ENTREVISTADO: O gato. (CLOSE NOS OLHOS) Eu sempre achei que ele era apenas mais uma criatura alegre e brincalhona... (PASSA O TAPE COM IMAGENS CASEIRAS DO GATO) Nunca imaginei que ele guardasse um poder tão maligno dentro de si... (FIM DO TAPE) Minha vida nunca mais foi a mesma depois que ele entrou por aquela porta (A PORTA É FILMADA).

PASSA O DEPOIMENTO DA PORTA:
"Quando o gato chegou eu não quis abrir, né. Mas não teve jeito. Bateram tanto em mim que eu tive que abrir. Eu já senti o mal neles, nos habitantes. Porque eu já sinto o mal de longe, né. Toda vez que o gato me encara eu fico com medo. Tem hora que eu travo mesmo."

ENTREVISTADOR: E você? Será que também convive com o mal? Será que o mal também está encarando a sua porta? Será que precisa renovar as energias da sua casa? Fique ligado nos próximos episódios do programa para saber como pressentir e expulsar o mal da sua vida.